Até que ponto o cristão deve se envolver na política?

Pastores defendem que, embora o crente tenha o dever de exercer a sua cidadania e o direito de concorrer a cargos públicos, o posicionamento do cristão deve refletir os ensinamentos bíblicos

Desde a década de 1980, o número de evangélicos eleitos aumenta a cada legislatura. O lema “crente não se mete em política” já deixou de ser uma realidade em boa parte da comunidade cristã que, cada vez mais, reivindica ocupar espaços no Legislativo e no Executivo. Muitas lideranças pastorais justificam a importância de o evangélico estar presente também na política. Mas, considerando o papel diferenciado que o cristão deve desempenhar na sociedade, quais os limites desse envolvimento?

Para o jurista William Douglas Resinente dos Santos, atualmente desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, os limites são dados pela lei de Deus e pela legislação do país. Ou seja, se o cristão respeitar as regras bíblicas e agir conforme o ordenamento jurídico, ele estará dando um bom testemunho.

“Um outro cuidado é não ver a fé pelos olhos da política, mas a política pelos olhos da fé. O compromisso com Jesus e com o Reino deve superar de longe qualquer interesse pessoal ou político. Isso também envolve não se contaminar com ‘as iguarias da Babilônia’, que são muito sedutoras”, acrescentou o desembargador.

O pastor da Igreja Metodista Wesleyana Abdruschin Schaeffer Rocha alerta que o crente deve ter alguns cuidados ao adentrar a cena política. Um desses pontos de atenção é que a religião não seja instrumentalizada para fins políticos. “Os cristãos devem evitar a tentação de confundir a fé com ideologias político-partidárias específicas e o cuidado com a dominação (um limite, aliás, muito tênue). Por um lado, a fé cristã transcende qualquer partido ou agenda política; por outro, o serviço e o cuidado — características de uma igreja que se importa com as transformações sociais — não podem se transmutar numa ferramenta de poder”, declarou Rocha.

O teólogo e pastor da Igreja Batista Alternativa, Rodolfo Capler, salientou que o cristão não deve confundir a missão da Igreja com os interesses de um partido político específico. “A nossa lealdade deve ser primeiramente ao Reino de Deus, sendo que as agendas político-partidárias não devem se sobrepor aos princípios do Evangelho. A busca por um governo que seja justo e que promova a paz deve ser sempre acompanhada de discernimento espiritual para evitar o comprometimento da mensagem cristã”, declarou Capler.

Já o pastor da Igreja Batista Betânia no Rio de Janeiro, Kenner Terra, ressaltou que o crente precisa tratar a função política como uma vocação, buscando o caminho mais difícil, que é o da honestidade. Na visão do reverendo, o cristão pode, sim, envolver-se na política institucional e partidária, desde que não use a igreja em prol desse tipo de projeto. Já aqueles que não se sentem vocacionados, mas querem se envolver em debates e discutir posições político-partidárias, podem fazê-lo, contanto que respeitem as opiniões divergentes e entendam que a igreja não é obrigada a acolher o seu posicionamento ideológico.

“O crente tem, sim, o direito de se envolver em discussões políticas, desde que respeite os posicionamentos diversos, não meça a espiritualidade e a fé do outro por conta da sua escolha político-partidária e nunca acredite que qualquer projeto político-partidário seja a representação fiel do Reino de Deus. Porque nunca será. O Reino está sempre acima de qualquer projeto político-partidário”, frisou Terra.

Segundo o pastor Abdruschin Rocha, entre os textos favoráveis, estão: Provérbios 29:2 – Quando os justos governam, o povo se alegra; quando os ímpios dominam, o povo geme”; Mateus 5:13-16 – Jesus chama os cristãos a serem “sal da terra” e “luz do mundo”, e Romanos 13:1-7, em que Paulo fala sobre a submissão às autoridades. Rocha explicou que a segunda passagem citada pode ser interpretada como um chamado aos cristãos a fim de influenciarem a sociedade de uma forma positiva. Já a última “supostamente implicaria um respeito e potencial participação dos cristãos em face do papel legítimo dos governos”.

Também de acordo com o reverendo, há dois versículos geralmente empregados para se contrapor à participação do cristão na esfera pública. A primeira passagem está em João 18:36, quando Jesus diz “Meu Reino não é deste mundo”. Para algumas pessoas, isso significa que os cristãos devem se dedicar mais aos assuntos ditos “espirituais” do que aos políticos. A outra referência bíblica está em 2 Timóteo 2:4: “Nenhum soldado em serviço se envolve em negócios da vida civil, porque seu objetivo é satisfazer aquele que o alistou”.

Nesse cenário, o pastor Abdruschin Rocha acredita que é importante ressaltar que todos esses versículos devem ser interpretados em seu contexto histórico e cultural. “Se queremos buscar base bíblica para pautar o envolvimento do cristão na política, essa base deveria se construir a partir daqueles princípios gerais que balizam a fé, tais como a justiça, o amor, o bem comum, a compaixão, a paz e o cuidado, entre outros”, destacou o pastor metodista.

Assim como Rocha, o teólogo Rodolfo Capler esclareceu que não há, na Palavra de Deus, uma passagem que trate diretamente sobre o envolvimento do cristão na política. “Na Bíblia não há nenhuma menção relacionada a isso, pois é um livro escrito antes da fundação do Estado Moderno e das chamadas democracias liberais”, explicou Capler.

Para Kenner Terra, se o pastor se sente vocacionado para a política, não há problema algum em se envolver, desde que se afaste da sua função pastoral.

“Se ele pastoreia alguma igreja, se representa algum tipo de instituição religiosa ou convenção, ele precisa se desconectar. Porque ele vai se envolver com uma área de atuação na qual não pode usar a igreja para isso”, salientou Terra.

O reverendo também acredita que utilizar a nomenclatura “pastor” no nome de urna não condiz com a ética cristã. “Pastor não faz parte do nome dele.

Claro que alguns usam o título porque este representa a sua própria identidade, as pessoas o conhecem por isso. Mas, mesmo que use, ele precisa saber com clareza por que usá-lo no processo eleitoral. Ele não deve achar que a igreja seja o seu reduto eleitoral; precisa entender que a sua vocação não é para representar a igreja, mas, sim, o povo”, ressaltou Kenner Terra.

O teólogo Rodolfo Capler reforçou que o pastor precisa ter clareza sobre os motivos que o levaram a esse envolvimento.

“A vocação ministerial e a vocação política exigem posturas, compromissos e responsabilidades distintas. O pastor tem que questionar se a política é uma extensão de seu ministério ou uma distração que pode levá-lo a perder de vista seu verdadeiro chamado.”

Capler disse ainda que o pastor deve ser exemplo de integridade, tanto na política quanto no ministério, evitando qualquer comportamento que possa comprometer sua credibilidade ou a da igreja.

É preciso ter o cuidado para que seu envolvimento político não transmita a imagem de que a igreja está alinhada a alguma agenda partidária específica. “O papel do pastor é ser um agente reconciliador e promotor do Reino de Deus, não de partidos ou plataformas políticas que, por natureza, são transitórias e muitas vezes polarizadoras. ”

Rocha destacou que, ao adentrar na política, o líder eclesiástico deve manter a postura de serviço, uma vez que a essência do ministério pastoral é a de servir, e não de buscar poder. “O pastor deve estar disposto a ouvir diferentes perspectivas e trabalhar de forma colaborativa, promovendo o diálogo e a reconciliação. ”

Para o desembargador William Douglas, esse cenário é lamentável e representa a realidade de que a Igreja se perdeu do que ensinam as Escrituras. “Temos isso acontecendo dos dois lados, temos igrejas ‘de direita’ e ‘de esquerda’ e ambas estão erradas. Jesus não é de direita nem de esquerda, Jesus é de cima. O Evangelho existia antes de haver direita e esquerda e existirá depois. Não se pode querer encaixar o Evangelho em uma ideologia secular ou colocar a Igreja a serviço dela”, argumentou o jurista.

Esse ambiente polarizado no meio cristão motivou o escritor Bento Adeodato Porto a lançar, no ano passado, o livro Vencendo a Divisão do Povo de Deus nas Igrejas Evangélicas: Como Ser Luz do Mundo no Brasil Dividido pela Política. Ele analisa que muito da ruptura que ocorreu nas igrejas se deu devido à postura de muitos cristãos – pastores e membros – de querer impor uma opinião ou posicionamento, o que incorre na quebra do livre-arbítrio que o Senhor concedeu a cada um de nós.

“A vontade de Jesus é que nós sejamos um, assim como Ele e o Senhor Deus são um. É o que está escrito em João 17. Portanto, nenhum cristão tem o direito de quebrar essa unidade dentro da igreja. Quando ele, na sua legítima cidadania, adere a um partido político e a uma ideologia, como cidadão ele pode aderir. Mas quando ele quer forçar o rebanho a seguir a mesma ideologia política dele, incorre em pecado, porque divide a igreja e desrespeita a liberdade das pessoas”, explicou Porto.

Para o pastor da Igreja Manaim, em São Paulo, Ricardo Bitun, a polarização é um fenômeno comum no campo político e democrático; no entanto, torna-se preocupante quando resulta em violência. Ao refletir sobre como esse cenário se apresenta no meio cristão, o reverendo analisa que o ambiente de discórdia e de contenda se contrapõe ao Evangelho que a Igreja prega.

“Como um povo que tem a mensagem da reconciliação está fracionado? Como um povo que tem a mensagem do amor vai com o ódio? Como um povo que tem a mensagem da paz apregoa o caos? Não faz sentido”, concluiu Bitun.

Para evitar que a polarização invada o ambiente da igreja, o pastor presidente da 1ª Igreja Batista Universitária do Brasil, em Duque de Caxias/RJ, Carlos Alberto dos Santos, acredita que questões político-partidárias não podem permear o ambiente da comunidade de fé, pois o papel da Igreja não é político, e sim o de pregar o Evangelho. “Púlpito não é palanque eleitoral. O seio da igreja não é local para isso”, concluiu o pastor batista.